Paulo Rosa

Amizade em Millôr Fernandes

Paulo Rosa
Sociedade Científica Sigmund Freud, SPR Society for Psychotherapy Research, Associação Psicanalítica Argentina
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Em Millôr Definitivo ou A Bíblia do Caos, de 1994, LPM Ed., Porto Alegre, Millôr Fernandes reuniu mais de cinco mil galimatias. Dizendo ácidas verdades em meio a humor corrosivo e engraçado, falou ainda sobre amizade, amor, essas coisas. O "irritante guru do Meyer", página 19, faz considerações sobre o verbete. Começa declarando que "de madrugada o melhor amigo do homem é o cachorro-quente", confirmando a verve demolidora, mas também aí diz, "amigo é o que quando você vai lá ele já vem vindo", pondo em evidência sua sensibilidade terna na percepção do que seja um amigo, alguém capaz de antecipar necessidades e desenrolar caminhos ao intercambiar o afeto.

Vai mais, "com a amizade já extremamente cansada os anfitriões esperavam que os últimos convidados fossem embora". Quem já não teve a experiência? Madrugada, não se aguentando de cansado na festa em casa, os recalcitrantes, que querem saborear até a última gota, em lugar de prestar atenção na cara de sono dos donos da casa, isolam-se do mundo e permanecem como se fosse oito da noite. Recorrendo ao próprio Millôr, caberia perguntar-se se serão efetivamente amigos ou meros assemelhados. No quesito, o guru do Meyer despacha: "todo mundo tem uma porção de amigos que detesta e um ou outro inimigo de que gosta". Traz-nos as contradições que nos constituem e que bem vale levá-las em conta quando das avaliações do cotidiano. Um ceticismo nível Millôr faz bem à saúde.

E mais esta: "a coisa mais comum do mundo é confundir convivência com amizade". Que alívio seria para todos se convívio fosse sinônimo de amizade. A incômoda e chocante história de Caim e Abel, cujo conviver foi abalado por questões de heranças e reconhecimentos parentais desnivelados, de parte de Adão e Eva, levou à sangrenta tragédia bíblica. Millôr acrescenta: "só existe coisa mais desamparada do que um recém-nascido: é um recém-pai", lembrando-nos das fragilidades inescapáveis de nossos próprios pais e de que sim, podemos confiar neles, mas sem abandonarmos a indispensável vigilância. Não é confiar desconfiando, atitude para néscios, mas confiar vigiando, coisa recomendada inclusive para si mesmo. Pais também erram, bom lembrar, verdade acaciana que serve para despertar-nos, quando navegamos incautos.

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